quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Globalização: vantagens e desvantagens

1. Definindo a questão: a complexa relação entre a globalização e o desenvolvimento
A temática deste ensaio aborda um dos mais complexos problemas da agenda econômica contemporânea (ou da própria política prática), a saber, a questão das relações causais ou, em sentido amplo, a das interações entre, de um lado, o processo de integração crescente dos sistemas produtivos nacionais, dos fluxos financeiros e dos intercâmbios globais de bens e serviços, sob a égide do sistema multilateral de comércio, e, de outro, o crescimento sustentável de uma determinada economia nacional, com modernização de suas estruturas sociais e políticas. Obviamente, existem outros fatores em jogo no processo de desenvolvimento, sobretudo os de natureza institucional e aqueles relativos ao substrato cultural da sociedade em questão, mas não parece ser possível isolar, nos últimos dois ou três séculos de “capitalismo triunfante”, qualquer processo nacional de modernização econômica e social dos fluxos e refluxos das trocas inter-societárias – tecnologias, capitais, homens, ademais de produtos físicos e de bens intangíveis – que atuam sobre aquele processo nacional, no contexto da crescente interdependência planetária.
Em perspectiva histórica, trata-se de um problema, que os economistas clássicos sempre tentaram interpretar teoricamente a partir de suas reflexões sobre os efeitos transformadores das novas técnicas e dos processos e produtos importados sobre uma economia em estado de equilíbrio instável. Ora uma economia, por mais autárquica que seja, sempre se encontra em estado de “equilíbrio instável”, isto é, ela vive confrontada a processos dinâmicos de adaptação a “bolhas” de crescimento, à instabilidade dos ciclos de negócios, às crises financeiras e ao deslocamento do emprego, em função da evolução das técnicas, em mutação lenta ou rápida, segundo as épocas e as sociedades.
Como se vê, o problema é efetivamente complexo, e o presente texto não tem a pretensão de esgotar o assunto e muito menos de equacioná-lo, nos limites mais modestos da experiência de desenvolvimento econômico do Brasil e o itinerário recente de sua integração mais intensa à economia mundial. Atente-se para o fato que o “desenvolvimento”, enquanto projeto social, é extemporâneo, e talvez mesmo anacrônico, para o período anterior à segunda guerra mundial.
Deve-se igualmente alertar para o risco de se introduzir valorações qualitativas na avaliação do fenômeno em causa. Com efeito, pode ser irrelevante falar de “vantagens” ou “desvantagens” do processo de globalização, uma vez que o processo contém ambas qualidades ao mesmo tempo, de forma obviamente contraditória. Nenhuma força humana, e provavelmente sequer social, seria capaz de controlar esse processo, moldando-o conforme os interesses de uma economia individual, de maneira a isolar apenas os fatores positivos – que seriam então selecionados e integrados a esse sistema nacional –, e mantendo à margem, ou neutralizando, aqueles fatores considerados como negativos ou perniciosos à “boa saúde” daquele sistema. O qualificativo de “indomável” aplicado à globalização – ou “selvagem” e “assimétrica”, do ponto de vista dos antiglobalizadores – revela bem o caráter incontrolável desse processo ou fenômeno. Pode-se não gostar dessas características da globalização, como não parecem ter boa reputação
modalidades “selvagens” de capitalismo, de tipo “manchesteriano”, como em vigor na China e em outros países asiáticos, mas não consta ser factível a governos nacionais mudar de modo dramático essas formas improvisadas e irrefreáveis de inserção das economias nacionais no grande turbilhão da modernização capitalista.
Da mesma forma, não parece ser possível uma “taxonomia” das globalizações possíveis para uma eventual seleção darwiniana de seus componentes mais ou menos favoráveis a um determinado sistema nacional. A utilização do plural confirma que existem vários tipos de globalização – não apenas setoriais (financeira, produtiva, comercial, etc.), mas também do ponto de vista institucional (isto é, a forma pela qual ela adentra as economias nacionais e como os governos reagem a seus impactos diferenciados) –, tanto quanto existem modalidades diversas, não todas coincidentes, de “capitalismos nacionais”, que se adaptam às estruturas específicas das muitas formações sociais nas quais emergem e se desenvolvem.
Pelas próprias características do processo de globalização, os capitalismos deixam progressivamente de ser “nacionais”, ao integrarem-se progressivamente à grande cadeia da interdependência econômica mundial, que começou a ser construída a partir dos descobrimentos, conheceu saltos e interrupções ao longo dos últimos cinco séculos e vem acelerando-se de forma gradativa no período pós-Guerra Fria, isto é, após a “breve” interrupção de setenta anos de experimentos socialistas em economia.
Pode-se perguntar se os esforços dos antiglobalizadores – ou altermundialistas – em prol da “humanização” desse processo “selvagem”, ou seu enquadramento em uma camisa de força disciplinadora, são eficientes ou sequer factíveis. No mais das vezes, trata-se de operação puramente retórica, resumindo-se a uma afirmação gratuita em torno da necessidade de tornar esse fenômeno “solidário”, com “face humana” ou simplesmente “social”, atitude bem ao gosto de políticos. Existem, contudo, possibilidades mínimas de converter tais intenções em realidade, pela simples razão de que não se dispõe de alavancas políticas ou econômicas à altura desse tipo de empreendimento. Ele simplesmente não é “moldável” por qualquer empresa capitalista, por mais poderosa que seja a multinacional em causa ou por mais recursos financeiros que consigam reunir “sindicatos de capitalistas” ou mesmo governos inteiros.
A razão é muito simples: o itinerário da globalização confunde-se com a própria marcha do capitalismo. Não há, neste caso, qualquer equivalência funcional ou estrutural com o sistema econômico concorrente, o socialismo (de tão contraditória memória), que, ele sim, resultou das elucubrações de cérebros inovadores, ou de um projeto concebido por homens sinceramente devotados à causa da melhoria da condição humana. As diversas experiências de coletivismo, ao longo do século 20, resultaram em sistemas disfuncionais do ponto de vista da organização social da produção, sem mencionar o balanço final dessas tentativas, a longa lista de tragédias políticas, de genocídios étnicos e de bárbaros atentados à liberdade e à dignidade humana.
A globalização pode ser vista como representativa do chamado “espírito do capitalismo” – mas com ele não deve ser confundida –, no sentido em que resulta de tendências históricas impessoais, que se combinam a mecanismos de mercado e de poder, fazendo com que os processos estruturais de dominação e de exploração, sempre presentes em qualquer época e sociedade, sejam eventualmente mobilizados em favor de determinadas forças políticas e sociais, que deles então tiram “vantagens”, em detrimento de outros grupos sociais, que ficam temporariamente com suas “desvantagens”. Essa situação – que já recebeu a caracterização de “centro” e “periferia” – pode, obviamente ser alterada, mas isso depende da capacitação endógena ou adquirida daquelas forças temporariamente em situação desvantajosa, e do declínio relativo daqueles grupos, ou sistemas econômicos, colocados em situação de comando.
Este é o sentido do famoso aforismo marxiano, “De te fabula narratur”, significando que a sociedade ou economia mais evoluída aponta o caminho que procurarão seguir as demais: assim ocorreu com os Estados Unidos e a Alemanha em relação à Grã-Bretanha, no decorrer do século 19, com o Japão em relação a todos eles juntos, pouco tempo depois, e, agora, com os países emergentes, lançados ao encalço dessas economias avançadas, com o espírito de emulação e de inovação a que todos têm direito. Este também é o sentido do esquema analítico do historiador russo-americano Alexander Gershenkron, sobre as “vantagens econômicas do atraso”, que supostamente habilitariam as economias retardatárias a dar “saltos tecnológicos”, adotando técnicas e processos produtivos já disponíveis nos países mais avançados. Nem sempre é assim, obviamente, pois devem ser levados em conta fatores políticos e institucionais, que também foram muito bem analisados por um outro historiador econômico, Douglass North.
A complexidade das relações entre a globalização e o desenvolvimento dificulta a tarefa de avaliar, de modo preciso, as vantagens e desvantagens desse processo. Estudos econômicos inovadores têm, contudo, trazido novas luzes na avaliação do impacto desse processo nos indicadores de pobreza e de desigualdade, como se verá mais adiante. Independentemente, porém, de posições políticas favoráveis ou contrárias ao processo de globalização, pode-se, por simples razões de evidências empíricas e de “lições da história”, partir de algumas constatações elementares.
Com efeito, segundo dados e análises compilados a partir de indicadores objetivos de renda e de participação no comércio internacional, os países que apresentam um maior coeficiente de abertura externa – isto é, participação mais elevada do comércio exterior na formação do PIB – ou que ostentam, de maneira geral, um maior grau de abertura econômica (fluxos de capitais, investimentos diretos etc.), apresentam uma renda média superior a 23 mil dólares, ao passo que aqueles países caracterizados por uma economia mais “reprimida”, fechada aos intercâmbios globais, exibem anêmicos 3.800 dólares como renda per capita. Ainda que se pudesse argumentar que nem todos os fatores de riqueza nacional se devem, prioritariamente, à abertura externa, não creio que evidências contrario sensu, isto é, exemplos de “vitalidade” econômica num ambiente econômico relativamente fechado, possam estabelecer correlações empiricamente válidas entre a autarquia e uma suposta “prosperidade nacional”. Os exemplos da história são todos arrasadoramente em favor da globalização como vetor de criação e de distribuição de riquezas.
Não se afigura necessário, para todos os efeitos, conceitualizar ou explicitar a noção de globalização, fenômeno que em outras épocas históricas já teve outros nomes. A compreensão de “senso comum” é aquela que se encontra nas páginas das revistas e dos jornais diários: todos têm uma noção bem precisa do que se está falando, ainda que os altermundialistas tendam a misturar a globalização com certas doutrinas econômicas – sendo a mais freqüente o neoliberalismo – ou a equacioná-la a um determinado modo de produção, o capitalismo. O leitor educado sabe no entanto que esses conceitos não devem ser confundidos.
2. Tipos e modos da globalização: seu impacto nos sistemas nacionais
A globalização se faz presente, em primeiro lugar, mediante as relações financeiras e de comércio que os países mantêm entre si, mas é pelo setor produtivo que ela é suscetível de impactar mais decisivamente o perfil e a própria estrutura das economias nacionais. As três dimensões estão obviamente interrelacionadas, como o próprio itinerário do desenvolvimento do Brasil pode facilmente demonstrar. Com efeito, como já ensinava há mais de meio século Caio Prado Júnior, o Brasil emergiu para o mundo e se constituiu como nação como um entreposto colonial português, que depois foi adquirindo novas funções produtivas na medida em que a metrópole se encarregava de inseri-lo em um conjunto mais amplo de circuitos comerciais.
Estávamos então na primeira globalização planetária, a da era dos descobrimentos e do capitalismo mercantil, quando os príncipes conquistadores e os comerciantes europeus deitavam velas em todas as direções dos mares para incorporar novos territórios a seus domínios próprios e novos mercados provedores ou consumidores das mercadorias então valorizadas. Não possuindo nenhuma das riquezas “extrativas” da Ásia ou de certas partes das Américas – como especiarias, panos de luxo, metais preciosos –, o Brasil teve de ser finalmente aproveitado num regime de plantação e, mais adiante, de mineração.
Essa primeira globalização se fazia segundo uma ordem econômica fragmentada, já que colocada sob o domínio do “exclusivo colonial” e dos regimes fechados entre si, com escassa complementaridade produtiva entre impérios concorrentes, quando não inimigos. Ainda assim, certos traços da globalização contemporânea já se faziam presentes no Brasil colonial: técnicas produtivas transplantadas desde a Europa e adaptadas às circunstâncias do meio colonial, investimento na produção e financiamento da comercialização por casas comerciais e bancárias italianas ou da Europa setentrional, holandesas em especial, e apropriação da maior fração dos lucros resultantes não na vertente da produção, mas do lado da demanda na ponta final.
Esse tipo de globalização de exploração ou de “extração” conheceu, como seria de se esperar, escassa ou nula incorporação de técnicas “modernas” e quase nenhum desenvolvimento institucional e político, já que, no caso do Brasil e de outras experiências históricas similares, era fundado no regime de plantação escravista e não, como em grande medida na América do Norte, no estabelecimento de núcleos familiares de ocupação permanente, suscetíveis de fundarem uma economia de subsistência e semimanufatureira, integrada a mercados locais ou externos e apoiando-se numa certa monetização dessas atividades produtivas e mercantis. Em uma palavra, essa “globalização” confundia-se, obviamente, com o regime da colonização, característica que os altermundialistas contemporâneos acreditam encontrar nas formas atuais de globalização, sob a égide grandes empresas multinacionais, a maior parte delas americanas ou européias.
Está claro que o regime da “globalização colonizadora” não se organizava para promover o desenvolvimento econômico e social das novas “terras de promissão” assim incorporadas aos circuitos mercantis do primeiro capitalismo, e nem poderia ser de outro modo: o objetivo era mesmo o de, com base no trabalho servil, “extrair” recursos ou instalar centros produtores para atender a mercados que existiam tão somente nos centros consumidores já constituídos. Algo diferente foi a história dos núcleos de ocupação familiar na América do Norte, que tendiam a reproduzir o modo de vida seguido nas comunidades de origem, transplantando instituições e técnicas que seriam “desenvolvidas” naturalmente no novo ambiente. Não é assim surpreendente constatar que a chamada revolução industrial e processou de forma quase simultânea na “velha” e na nova Inglaterra, a do nordeste do que viria a ser os Estados Unidos.
O longo período histórico que vai da primeira até o auge da segunda revolução industrial – grosso modo, do último quarto do século 18 até o início do século 20 – conhece uma segunda onda de globalização, já não mais caracterizada pelo regime mercantilista da colonização, mas pela integração dos mercados mundiais sob a égide da expansão da produção manufatureira e facilitada pela revolução nos meios de transportes e de comunicação (vias férreas, navios a vapor e o telégrafo de fio terrestre ou cabo submarino, que foi a internet da era vitoriana). Por certo, potências européias ainda se ocuparam de esquartejar e incorporar aos seus domínios imensos territórios na África e na Ásia, mas essa “colonização imperialista” não muda o caráter desta segunda onda de globalização, não mais simplesmente mercantilista, mas basicamente produtiva.
A era da “globalização industrial” assiste a uma primeira diferenciação da periferia: estados nacionais recentemente independentes, da América ibérica e de partes do Mediterrâneo e do Oriente Médio, se lançam em empreendimentos modernizantes, nem todos bem sucedidos, mas dotados, em todo caso, de uma certa autonomia política e financeira, o que os habilita a determinadas escolhas quanto ao tipo de inserção internacional desejada. Esse período assiste à passagem da Pax Britannica para o American Century e os processos econômicos e geopolíticos de dominação não excluem a possibilidade de vias nacionais de desenvolvimento econômico e político, no sentido em que ambos projetos imperiais não se colocavam em contradição – e em geral encorajavam – com a promoção da economia capitalista, de uma sociedade relativamente pluralista e de um sistema político formalmente democrático.
Mas o conceito de “desenvolvimento” ainda é anacrônico nessa época, pois nenhum Estado, mesmo nos países mais avançados, tinha um papel econômico muito pronunciado – a maior parte não tinha sequer estruturas tributárias dignas do nome, vivendo dos impostos sobre o comércio exterior e uma ou outra forma de taxação sobre a terra, além de certos produtos monopolizados – e a noção de um projeto de “modernização nacional” era simplesmente inexistente. Com certeza, as elites dos velhos Estados absolutistas e das novas repúblicas constitucionais tinham uma noção da necessidade de elevar o “poder nacional”, inclusive via promoção de atividades manufatureiras e comerciais – a exemplo das “leis de navegação” e das “fábricas nacionais” – mas esses objetivos se davam mais por motivos de defesa da soberania do que em função das necessidades dos agentes econômicos privados.
A verdadeira “riqueza das nações” começa a adquirir contornos mais precisos nessa era, a da emergência do big business, isto é, da aparição das primeiras empresas que logo em seguida se tornariam mundiais. É também o período em que se dá a primeira “grande divergência” entre as economias nacionais, pois que até então as diferenças entre os sistemas agrários de baixa produtividade não conformavam disparidades absolutas nos níveis de renda. O nível de vida de um camponês na China, a maior economia planetária até o século 18, não se diferenciava muito do de seu congênere europeu, que passou a partir daí a sofrer o impacto da revolução industrial, que transformaria dramaticamente o perfil da economia mundial.
O Brasil, evidentemente, ingressou tardiamente na era da revolução industrial, tendo, o que é mais grave, preservado o regime servil que o manteve amarrado a baixos índices de produtividade do trabalho durante mais de um século. Sua participação na globalização foi, nessa época, basicamente financeira e comercial, ambas de forma dependente e sem condições de promover um processo sustentado de desenvolvimento econômico e social como ocorreu, durante todo esse período, nos Estados Unidos e em países da Europa, com base, em grande medida, na expansão da educação de base e na propagação das técnicas industriais. Essa dupla dependência se revelava tanto na concentração do setor dinâmico da economia em poucos produtos primários de exportação – com predominância absoluta do café durante mais de um século – como na necessidade de fluxos de recursos financeiros do exterior. A importação de capitais se fez, durante todo o século 19, via emissão de bônus soberanos no mercado londrino, primeiro para a própria sustentação orçamentária do Estado brasileiro (e também a amortização de empréstimos anteriores), depois, quando o café permitiu saldos na balança comercial, para os investimentos em infra-estrutura ligados à economia de exportação (sem mencionar a guerra do Paraguai).
No século 19 e até o início do século 20, o crescimento brasileiro foi extremamente lento, sem real transformação da sociedade brasileira. Ocorreu uma certa integração aos mercados financeiros internacionais e o Brasil pode compensar a ausência de poupança interna e de receitas suficientes para alimentar os poucos investimentos realizados no período mediante o apelo aos mesmos mercados londrinos – e em parte europeus e dos Estados Unidos, no fim do período –, sem que ameaças de default ou crises financeiras perturbassem enormemente essa entrada de recursos financeiros. No começo da era republicana, cresceram os investimentos diretos estrangeiros, geralmente direcionados para aquelas mesmas atividades que apresentavam vínculos com a economia “globalizada” dessa época. O coeficiente de abertura externa da economia – exportadora primária e importadora de quase todo o resto – era relativamente alto, provavelmente em torno de 20% do PIB, em todo caso mais do que o dobro do que viria a ser em todo o período de crescimento para dentro da era de substituição de importações a partir de 1930.
Pode-se, assim, considerar que essa globalização da era do laissez-faire “modernizou”, em parte, instituições e instrumentos vinculados ao setor externo, mas ela não foi suficiente, está claro, para mudar as estruturas da sociedade e da economia do Brasil. Mas, o mesmo poderia ser dito, mutatis mutandis, da fase seguinte, de introversão produtiva e de ruptura relativa com os mercados internacionais, processos ocorridos a partir da primeira guerra mundial e fortemente estimulados pela sucessão de crises a partir de 1929. Começa então um período de introversão relativa na vida econômica brasileira, resultante não de uma escolha consciente por parte das elites dirigentes mas das circunstâncias excepcionais de fechamento dos mercados externos, de crise geral nos sistemas de pagamento e de conversão de moedas, de protecionismo exacerbado e de receitas dirigistas e estatizantes.
Persiste ainda uma certa tendência na historiografia brasileira, com base entre outros em Celso Furtado, a ressaltar que o forte impulso de crescimento econômico brasileiro foi devido justamente ao período de ausência de concorrência externa e de grande fechamento da economia, o que teria possibilitado uma fase de acumulação para dentro e, portanto, criado um ambiente favorável ao processo industrializador. Cabe, entretanto, uma outra interpretação que postula a característica muito pouco eficiente desse processo industrializador como resultado dos choques adversos, enfatizando ao contrário que a modernização teria sido muito mais completa e equilibrada se implementada em condições normais de intercâmbio internacional de bens, serviços, capitais, tecnologia e idéias. Em outros termos, a ausência de “globalização” tornou menos completa a transição brasileira para a modernidade.
Seja como for, a inserção do Brasil na ordem econômica internacional é retomada ao final da guerra, ainda que em condições de retração relativa da globalização, já que uma parte substancial dos recursos produtivos e do “exército industrial” mundial é subtraída do grande jogo capitalista da divisão internacional do trabalho, com o avanço do socialismo sobre a Europa central e oriental e, logo em seguida, na Ásia, com a conversão da China ao sistema de economia centralmente planejada. As instituições de Bretton Woods e as demais agências econômicas internacionais, a começar pelo sistema multilateral de comércio regido provisoriamente (durante 50 anos) pelo GATT, presidem ainda assim a uma das mais exuberantes fases de expansão econômica da história recente da humanidade, período que ficou conhecido como o dos “trinta (anos) gloriosos”, as três décadas de crescimento praticamente ininterrupto até meados dos anos 70, quando o primeiro dos choques do petróleo abre uma fase de “estagflação” na economia mundial.
Ainda que os franceses costumam falar de “americanização” do mundo, o fato é que o peso relativo dos Estados Unidos na economia mundial começa a diminuir com o sucesso da reconstrução européia e, sobretudo, com a (re)emergência de dois novos gigantes nesse cenário, o Japão e a Alemanha, extremamente bem sucedidos na conquista de novos mercados e logrando produzir superávites comerciais gigantescos, mesmo em face da valorização constante de suas moedas respectivas em face do dólar. De mais de um terço do produto e do comércio globais no imediato pós-guerra, os Estados Unidos recuam para menos de 20% no início dos anos 70, quando pressões inflacionistas e desequilíbrios externos contribuem para precipitar o fim do esquema monetário desenhado em Bretton Woods, baseado numa paridade fixa da moeda americana em ouro (à razão de 35 dólares por onça de ouro) e na garantia irrestrita de conversibilidade. O mundo passa a conhecer a flutuação de moedas e um intenso movimento de especulação nos mercados cambial e de ativos financeiros. É o começo, embora ainda tímido, da terceira grande onda de globalização capitalista, a de base financeira, na qual nos encontramos ainda hoje.
Paradoxalmente, mas não exatamente por causa dessa “globalização financeira”, o Brasil assiste ao final de uma fase de grande crescimento econômico, impulsionada pela reorganização geral de sua economia na segunda metade dos anos 60 e permitida justamente pela expansão do comércio internacional e pela abundância de capitais estrangeiros (tanto para investimentos como para empréstimos), para adentrar num período de novos choques adversos sem quaisquer méritos modernizantes desta vez. A disponibilidade de recursos financeiros nos mercados comerciais de moedas ainda permite financiar os déficits comerciais (provocados pelos dois aumentos sucessivos nos preços do petróleo) e várias obras de infra-estrutura (como Itaipu, por exemplo), mas a notável elevação nas taxas de juros ocorrida a partir de 1979 conduz à crise da dívida externa de 1982 e ao estrangulamento financeiro por mais de uma década a partir de então.
Os grandes saldos comerciais produzidos ao longo dessa década e no começo dos anos 90 resultam mais do protecionismo exacerbado da política comercial – e do regime cambial baseado nas desvalorizações competitivas – do que de um aumento extraordinário nos fluxos de comércio internacional, que aumentam modestamente em comparação com as economias dinâmicas da Ásia, altamente competitivas nos mercados mais dinâmicos de manufaturados eletrônicos. Dessa fase da “globalização financeira” o Brasil conhece, justamente, a dependência financeira, seja dos credores comerciais, seja dos organismos multilaterais de crédito, FMI e Banco Mundial. Os investimentos diretos estrangeiros diminuem, não tanto devido a essa característica, mas em função da desorganização geral da economia, assolada por altas taxas de inflação, instabilidade geral das regras macroeconômicas, que passam a impactar negativamente o ambiente de negócios no nível microeconômico.
Após inúmeras tentativas frustradas de estabilização, o Brasil consegue finalmente se inserir na nova onda da globalização financeira, em meados dos anos 90, a partir do sucesso do Plano Real e das reformas econômicas internas – notadamente das privatizações – que atraem volume significativo de novos investimentos diretos estrangeiros, colocados não apenas nos setores desestatizados (como telecomunicações), mas igualmente em uma miríade de ramos industriais e de serviços, na esteira de um dos mais vigorosos processos de aumento dos níveis de produtividade já conhecidos na história econômica do Brasil. Contribuiu para isso o processo de abertura econômica e de liberalização comercial conduzido desde o início dos anos 90, tanto em função de decisões unilaterais tomadas a partir do governo Collor como em decorrência dos avanços no processo de integração sub-regional sob a égide do Mercosul. Foi a competição introduzida por esse duplo movimento de abertura que contribuiu para a modernização da indústria e dos serviços no Brasil, assim como a abundância de capitais financeiros e de investimento permitiu sustentar déficits substanciais na balança de transações correntes que de outra forma não teriam sido financiados pela diminuta poupança interna.
O saldo da onda de “globalização financeira” (ainda não terminada) dos anos 90 é, para o Brasil, contraditório, na medida em que aumentou a fragilidade externa da economia, não necessariamente em função da abertura aos capitais internacionais, pois outros fatores podem estar em jogo nos desequilíbrios acumulados no período. Se a simples abertura financeira fosse sinônimo de crise, a maior parte dos países da OCDE – tendo liberalizado amplamente os movimentos de capitais – viveriam em constante turbulência financeira, o que obviamente não é o caso. Em qualquer hipótese, a série de crises financeiras dos anos 90 e início da atual década terminou por impactar igualmente o Brasil – tanto no regime de banda cambial como no sistema de
flutuação da moeda –, obrigando-a a recorrer por três vezes a pacotes de apoio financeiro no quadro do FMI, mas de forma preventiva, cabe relembrar.
Esse período de turbulências, compreensivelmente, suscitou na população um sentimento de rejeição em relação à globalização, contribuindo parcialmente, talvez, para a vitória de forças políticas que sempre ostentaram um olhar crítico, para não dizer virtualmente contrário, vis-à-vis esse processo. Não sem razão, uma das principais diretrizes do principal partido de oposição convertido em governo legítimo é a superação da “fragilidade financeira externa”, mediante uma “inserção soberana do Brasil na economia internacional”. Em mais de uma ocasião, igualmente, os principais líderes desse partido têm condenado o “modelo perverso” de desenvolvimento, que teria sido supostamente seguido pelos adeptos do “consenso de Washington” e pelos defensores dos efeitos, em última instância, benéficos da globalização. A realidade da situação econômica brasileira é obviamente mais complexa do que essa visão simplista das relações entre abertura financeira e crise do setor externo da economia, mas não se pode deixar de reconhecer que o processo de globalização aumenta, de modo perceptível, os focos de instabilidade conjuntural. A solução para esse tipo de problema não está, contudo, na adoção de uma atitude introvertida no plano dos intercâmbios globais, mas na adaptação do sistema econômico nacional aos impactos inevitáveis da globalização contemporânea.
3. A globalização e as desigualdades: restabelecendo a verdade dos números
Muitos pesquisadores acreditam, com base em análises superficiais, que a globalização é de fato responsável pelo aumento nos índices de concentração e de desigualdade na distribuição de renda, tanto entre como dentro dos países. Os altermundialistas vão mais além, acusando a globalização de provocar crises financeiras internacionais e, a partir daí, desemprego e miséria. Os economistas, mais circunspectos, chegam a concordar com algumas dessas “evidências”, que indicariam que as últimas décadas foram marcadas por uma tendência aparentemente irresistível ao crescimento das desigualdades no plano global, movimento observável tanto na divergência cada vez maior entre países ricos e pobres como no aumento da concentração de renda nos estratos já ricos da população.
Mas, contrariamente às supostas tendências ao crescimento das desigualdades, estudos econométricos recentes, trabalhando com base em novas metodologias e um foco analítico inovador (estatísticas de consumo por indivíduo, não a renda média dos países), trazem evidências de que as taxas de pobreza e as desigualdades globais na repartição de renda têm na verdade declinado nas últimas décadas. As tendências positivas detectadas por esses economistas não estariam tanto associadas à globalização quanto à manutenção de altas taxas de crescimento em alguns grandes países — como China e a Índia, por exemplo —, mas não se pode tampouco descartar uma associação indireta e derivada desses dois impulsos baixistas, na pobreza extrema e nas desigualdades gritantes, com o processo de globalização conhecido no mundo desde os anos 1980.
Estudo efetuado pelo professor da Universidade de Columbia Xavier Sala-i-Martin (2002), revelou ter ocorrido uma redução geral das desigualdades de renda entre 1980 e 1998: tendo estabelecido funções para a distribuição mundial de renda, ele constatou que, se em 1970 o mundo apresentava uma larga fração da população num renda modal próxima da linha de pobreza — isto é, subsistência à razão de um dólar por dia —, essa fração começou a definhar e o mundo hoje se encaminha para uma “larga classe média”. Tanto as taxas de pobreza quanto o número de pobres decresceram dramaticamente: o critério de um dólar por dia caiu de 20% em 1970 para apenas 5% em 1998 da população mundial, enquanto que pelo critério de dois dólares por dia a taxa reduziu-se de 44% a 18%. Em termos de “volumes” humanos, isso representou uma subtração de aproximadamente 400 milhões de pessoas ao “estoque mundial” de pobres entre aqueles dois anos. Ou seja, o “dramático e perturbador” aumento da pobreza e nas desigualdades no período recente da globalização simplesmente não ocorreu, ao contrário do que afirmam os antiglobalizadores e mesmo economistas acadêmicos.
 A desigualdade, que pode ter crescido em alguns países — seria o caso dos Estados Unidos, por exemplo —, não foi suficiente para reduzir o movimento global no sentido da redução das desigualdades entre os países. O principal fator dessa diminuição foi representado, mas não totalmente, pelo rápido crescimento da renda de 1,2 bilhões de cidadãos chineses. Apenas um problema nesse quadro global: a situação da África, cujo itinerário econômico, social e político foi catastrófico nas duas últimas décadas. Se o continente africano não voltar a crescer nos próximos anos, a tendência à convergência entre os países se altera: a China, a Índia, os países da OCDE e os demais emergentes de renda média vão divergir das tendências declinantes na África e a desigualdade na distribuição de renda, computada globalmente, voltará a crescer.
O exemplo mais ilustrativo da tendência global revelada no citado estudo é obviamente o da Ásia, onde os índices de pobreza caíram de forma espetacular. A China e a Índia, ainda socialistas nos anos 1970, foram os países que mais progrediram do ponto de vista da diminuição da pobreza e da convergência em relação aos indicadores de países mais avançados. Nos Estados Unidos, por sua vez, simplesmente inexistem aquelas faixas de renda de pessoas que vivem com 1 ou 2 dólares por dia, que constituem as medidas padrões utilizadas pelos organismos internacionais para medir a pobreza. A Indonésia representou a mais dramática mudança na história econômica da humanidade, com redução sensível da pobreza e da desigualdade, mesmo a despeito da crise financeira de 1998, quando o PIB foi reduzido em mais de 15%.
A América Latina não foi uma região particularmente feliz em termos de diminuição do número de pobres, embora tivesse conhecido, igualmente, uma certa redução da pobreza, mas em décadas anteriores. No Brasil, os progressos efetuados nos anos 1970 foram freados nos anos 1980 e, nos anos 1990, com exceção de alguns anos, os ricos melhoraram mais do que os pobres. Os casos de aumento absoluto da pobreza e dos níveis de desigualdade ocorreram nos países africanos, ao passo que nos ex-países socialistas, que sofreram verdadeiro colapso econômico nos anos 1990, aumentou muito a desigualdade, sem que a pobreza, porém, tivesse se expandido de forma brutal. No continente africano, a Nigéria, o exato oposto da Indonésia, é o caso mais dramático de aumento simultâneo da pobreza e das desigualdades, muito embora os seus ricos — que caberia identificar em termos de rent-seeking associado à economia petrolífera — tenham conseguido obter ganhos sensíveis durante o período, dada, provavelmente, a elevada corrupção ali existente.
Pesquisas como as de Sala-i-Martin confirmam, por sua vez, estudos conduzidos pelo economista indiano Surjit Bhalla (2002), para quem a globalização não resultou em taxas menores de crescimento, nem em aumento da pobreza ou da desigualdade, mas ao contrário, numa diminuição sensível das desigualdades mundiais, dos índices de pobreza e um crescimento da renda dos estratos mais pobres, relativamente aos mais ricos. Bhalla encontra as mesmas evidências que o economista catalão no plano mundial, ou seja, uma tendência ascendente na Ásia e desenvolvimentos não muito felizes na América Latina e na África, ainda que ele observe que o processo de globalização não possa ser responsabilizado pelo declínio relativo destas últimas regiões. Ao contrário, acredita ele, pode ter sido a incapacidade em participar plenamente da globalização que causou a experiência de estagnação em ambas as regiões. Com efeito, ele lembra que após ter dobrado seu nível de renda de 1960 a 1980, a América Latina estagnou completamente nas duas décadas seguintes, ao passo que a África fez ainda pior, tendo experimentado uma redução de 12% em sua renda nesse período. Bhalla também relembra que a África tinha o dobro da renda asiática em 1960, ao passo que a situação se inverteu completamente na atualidade. As razões desse declínio são múltiplas, mas incluem a devastação trazida pela Aids, além de guerras e erosão da autoridade estatal.
Da mesma forma, outro economista indiano, N. Majid, trabalhando para a Organização Mundial do Trabalho, chegou a conclusões similares quanto aos efeitos da globalização sobre a pobreza e as desigualdades (2003). Ele constata, na mesma linha do que vem sendo argumentado por outros economistas, que a abertura comercial contribui para o aumento do crescimento, ainda que os vínculos entre as políticas de liberalização e o comércio possam ser limitados; não há, por outro lado, evidências de que o aumento do comércio exterior aumente as desigualdades sociais internamente, ocorrendo, ao contrário, tendências positivas, quando a abertura comercial pode ser combinada a outras políticas favoráveis ao crescimento econômico. Na ausência de um conjunto de condições institucionais suscetíveis de impulsionar o crescimento, apenas a abertura comercial pode não ser suficiente para geral um círculo virtuoso que liga o comércio à redução da pobreza.
Talvez não seja por outra razão que os únicos países que se manifestam resolutamente em favor do livre-comércio, atualmente, sejam os países emergentes e em desenvolvimento, em especial os mais pobres, ao passo que os países ricos, encapsulados na teia protecionista de suas políticas agrícolas, têm sido bem menos enfáticos a esse respeito. De fato, não parece haver contradição política mais importante, no âmbito dos foros mundiais no período recente, do que a retórica anti-comércio e contrária aos investimentos diretos estrangeiros dos altermundialistas, e de seus aliados nos grupos anti-capitalistas, e o discreto acolhimento, pelos países mais pobres, do discurso favorável à eliminação das barreiras comerciais e de uma prática de fato receptiva aos fluxos de capitais de risco. Entre os mitos e os fatos da globalização capitalista, os países em desenvolvimento parecem ter sinalizado, nesses foros, com uma postura política e econômica de fato globalizadora – ainda que não expressa de modo claro ou sequer direto – deixando o campo das “globobagens” entregue aos grupos festivos de altermundialistas, que nada mais fazem do que insistir nas desvantagens da globalização, sem trazer nenhum argumento consistente em favor de suas teses. 4. O espectro da globalização e os grilhões mentais do pensamento alternativo

O Brasil, como muitos outros países em desenvolvimento, tem manifestado uma atitude ambígua em relação à globalização, como de resto vis-à-vis políticas de liberalização comercial e de abertura ao capital estrangeiro. Os argumentos freqüentemente avançados em meios oficiais e nos grupos antiglobalizadores contra uma oferta mais ampla no acesso de seu próprio mercado por competidores estrangeiros, assim como na aceitação de regras mais favoráveis ao ingresso de investimentos diretos estrangeiros em setores ainda relativamente fechados de sua economia, se apoiam, precisamente, na hipótese de que tais decisões poderiam comprometer a definição e a implementação de políticas nacionais ou setoriais – industrial, tecnológica etc. – condizentes com as “necessidades brasileiras de desenvolvimento”.
Esse tipo de discurso não está, contudo, sustentado em simulações de impactos setoriais de modo a permitir uma avaliação mais concreta dos efeitos da globalização e seu papel no processo hodierno de desenvolvimento brasileiro. Os dados empíricos e as referências analíticas alinhadas ao longo deste trabalho permitiram em todo caso constatar que esses efeitos se situam bem mais pelo lado das vantagens do que na vertente das desvantagens. Verificou-se, ao contrário do avançado nos foros políticos altermundialistas, que ocorreu, ainda que por impulsos desiguais, um nítido progresso social e econômico trazido pela globalização, que melhorou a vida de milhões de pessoas em vários cantos do mundo (sobretudo na Ásia), o que não impede, obviamente, a deterioração da situação de outros grupos sociais.
De modo geral, as evidências sobre a convergência entre sistemas econômicos nacionais e a diminuição das desigualdades parecem agora bem estabelecidas, sobretudo do ponto de vista da equalização de salários em níveis similares de produtividade, o que deve beneficiar os mais capacitados no mundo em desenvolvimento (que alguns chamam de burguesia, ou de elite, do Terceiro Mundo). Os únicos, talvez, a perderem absolutamente seriam os trabalhadores pouco qualificados dos países desenvolvidos e uma difusa classe média, em vários países, que sente que lhe serão retirados os benefícios do welfare State. São exatamente estes grupos que compõem o grosso da massa mobilizada pelos movimentos da antiglobalização: “velhos” sindicalistas e jovens de classe média. Alguma surpresa nisto?
A referência ao caráter “irrefreável” ou “indomável” da globalização não deve significar nenhuma renúncia a uma atitude crítica em relação a esse processo, ou tampouco passar a considerá-lo como o equivalente histórico funcional de um novo “Renascimento”. Deve-se, ao contrário, estabelecer constatações de fato sobre seus efeitos reais — o que não exclui algumas interpretações —, bem como trazer a exame de todos os interessados as reflexões e análises das ciências sociais e as simulações econométricas realizadas com base em dados empiricamente rigorosos (e desprovidos, tanto quanto possível, de distorções metodológicas), com a finalidade de contribuir ao esforço de avaliação dos impactos do processo de globalização para o Brasil. As evidências coletadas nas pesquisas aqui referidas, bem como a experiência histórica dos países que se inseriram na economia mundial nas últimas duas décadas, trazem um quadro bem diverso da visão catastrofista alardeada pelos opositores da globalização, que de resto esgrimem meia dúzia de slogans alarmistas sem quaisquer evidências empíricas para sustentar suas alegações.
Não se deve entoar loas à globalização ou argüir que ela é isenta de riscos e de efeitos nocivos para aqueles setores e grupos sociais eventualmente situados do lado “errado” do processo de destruição criadora que ela gera de modo inevitável e contínuo. Obviamente, ela potencializa ainda mais os desafios que normalmente estão associados aos fenômenos mais conhecidos — e longa data familiares aos economistas clássicos e modernos — da defasagem tecnológica, da competição desenfreada, da substituição de trabalho humano por processos produtivos poupadores de trabalho, da pressão constante sobre os salários derivada da incorporação de novos exércitos industriais de reserva, enfim, velhos problemas já tratados, sob diferentes ângulos, por estudiosos tão diversos como Adam Smith e Karl Marx, Joseph Schumpeter e Milton Friedman, Raul Prebisch e Paul Krugman, Celso Furtado e Joseph Stiglitz. Nenhum deles, ao que se saiba, adotou a política do avestruz ou uma atitude puramente negativa em relação aos desafios, glórias e misérias do processo de globalização capitalista; ao contrário, tentaram compreender, em primeiro lugar, e oferecer políticas alternativas, em seguida, no que respeita os problemas e conseqüências indesejadas desse processo “indomável”.
Apenas deve ser deixado claro que invectivas ou manifestações de indignação moral não são substitutos ideais a análises ponderadas, empiricamente fundamentadas e metodologicamente adequadas — como aquelas feitas pelos economistas aqui citados —, e que tais reações podem, se tanto, obscurecer os dados do problema, em lugar de contribuir para uma boa organização dos debates. Argumentos racionais, logicamente consistentes e condizentes com a realidade, ainda são o melhor instrumento para a tomada de decisões inteligentes em matéria de políticas públicas, que é finalmente o que se deseja de cidadãos participativos na vida social. Por isso soa algo estranho que agrupamentos e personalidades dos meios acadêmicos e que se dizem “progressistas” conseguem ignorar os dados da realidade para se lançar numa cruzada contra a globalização, tão ingênua quanto desprovida de argumentação sólida. Pode-se considerar que deve ser por anticapitalismo instintivo, pois não parece haver outra explicação.
Assim, retomando as velhas tradições de análise crítica do desenvolvimento do modo de produção capitalista, já iniciadas no Manifesto de 1848, e parafraseando o final grandiloqüente desse ensaio tão atual quanto pertinente, se poderia dizer que os antiglobalizadores de hoje não têm nada a perder com esse tipo de exercício intelectual, a não ser alguns velhos grilhões mentais que os mantêm cegos e presos a esquemas conceituais ultrapassados. Em contrapartida, eles têm
um mundo novo a ganhar: bastaria olhar para o mundo real, constatar retrospectivamente os dados da história e usar doses moderadas de raciocínio econômico. O resto é bom senso…
Referências bibliográficas:
Almeida, Paulo Roberto de. Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas. São Paulo: Paz e Terra, 2002. –––– . O Brasil e o multilateralismo econômico. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999.
Bhalla, Surjit. Imagine There’s No Country: Poverty, Inequality and Growth in the Era of Globalization. Washington: Institute for International Economics, 2002.
Gershenkron, Alexander. Economic Backwardness in Historical Perspective. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1962.
Majid, N. “Globalization and Poverty”. Genebra: International Labour Organization, 2003; link: http://www.ilo.org/public/english/employment/strat/download/ep54.pdf (acessado em 5.02.04).
Sala-i-Martin, Xavier. “The disturbing ‘rise’ of global income inequality”, National Bureau of Economic Research, Working Paper w8904, Abril 2002, disponível no link: http://www.nber.org/papers/w8904 (acessado em 11.02.04).
Resumo:  Relação entre globalização e desenvolvimento. Tipos e modos da globalização e seus impactos nos sistemas nacionais. A globalização e as desigualdades. O espectro da globalização e os grilhões mentais do pensamento alternativo.
Palavras-chave: globalização, desenvolvimento, sistemas nacionais e pensamento alternativo.  
*O autor é diplomata e cientista político. pralmeida@mac.com; http://www.pralmeida.org/

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